segunda-feira, junho 19, 2006

Thomaz de Calheiros e Menezes

Na cama daquele hospital, eu continuava a sonhar com as mesmas brincadeiras, sempre ouvi dizer que não era boa coisa, estar internado num hospital, mas eu não pensava assim... a minha mãe trazia-me bolinhos de padaria, biscoitos e bolachas que eu desfazia em farinha, e tantas
outras coisas boas que, numa situação normal nunca acontecia. Brincava com as outras crianças, construindo sonhos com as caixas vazias das empolas de penicilina. Não fazia uma ideia do que realmente se passava com a minha perna esquerda. Doía-me no excesso de calor ou de frio e estava o dobro do tamanho da outra, devido ao inchaço. Tinha uma cor cinzento escuro e um aspecto nada recomendável. Os tratamentos eram diários e resumiam-se a uma injecção de penicilina de manhã e outra á tarde - mas as melhoras tardavam a chegar. A minha mãe entrava em pânico com o desenrolar dos meses sem ver um sinal de melhoras. Já tinha ouvido em sussurro que o mais provável era a amputação da perna... é uma criança! ... não é possível que não haja outra solução, pensava em voz alta com os olhos rases de lágrimas. Foi quando decidiu interceder pessoalmente junto do meu padrinho de baptismo, médico cirurgião muito conceituado, que se mantinha a par do meu estado por informações telefónicas.
... Mas como é isso possível?- ainda ontem me informaram que por efeito dos antibióticos estava a reagir muito bem!... Não te preocupes rapariga... manhã mesmo vou pessoalmente ao hospital inteirar-me da situação... e não desesperes Maria Olinda, o teu filho é como se fosse meu, e tu bem sabes isso... a última coisa em que quero acreditar, é o rapaz ficar aleijado para toda a vida.
No dia seguinte, logo pela manhã, acordei com o alvoroço das enfermeiras e médicos, num corrupio que não era habitual. De repente, a figura imponente do meu padrinho aos pés da minha cama... Era um homem por quem eu tinha um respeito e uma admiração sem tamanho, e apesar dos meus oito anos, ficou para sempre gravado em mim, a sua figura, o seu carácter e profissionalismo.
Depois de uma breve carícia e um olhar doce, mudou radicalmente de postura e ordenou às enfermeiras que lhe mostrassem a perna... depois de alguma hesitação ele falou em tom calmo mas seguro. Estou aqui como médico, e como tal tenho o direito de ver um doente que me é querido e saber o seu estado clínico... tirem as liga-duras que eu quero observar o estado dessa perna. A medo e com algum nervosismo à mistura, os profissionais fizeram-lhe a vontade. A minha perna a descoberto mais parecia um tronco queimado e deformado. O meu padrinho, ao ver o estado em que estava, não se conteve... e num tom alto que lhe desconhecia... Como é possível que esta criança chegue a este estado? - Quero falar com o médico assistente desta criança e com o director clínico deste hospital. Virou costas e sumiu por entre as inúmeras pessoas que ali se tinham concentrado, não sem antes me dar um piscar de olhos e um ténue sorriso.
Mais tarde, já em horário de visita, a minha mãe estava com o semblante mais sóbrio, mais confiante. Não te preocupes meu filho, o teu padrinho vai tomar conta de tudo, vais ficar bom. Nesse momento, sentia-me uma pessoa especial, tal era a atenção com que me tratavam.
Ao meio da tarde veio o meu padrinho com outro médico, enfermeira e auxiliares. Abeirou-se da minha cama e olhando-me nos olhos, disse: Vamos lá tratar essa perna, vais ser operado imediatamente... Com o medo estampado no rosto, perguntei: vão-me cortar a perna? Ele sorriu e disse: - Não Tomás, ( ele adorava tratar-me pelo meu segundo nome, que era também o seu) vou operar essa perna como se opera ao coração. Saiu logo de seguida com a sua equipe, enquanto algumas enfermeiras me preparavam para a anunciada cirurgia.

Nunca me tinha imaginado naquela situação, e para a minha idade tudo era muito confuso, uma infinidade de ferros e utensílios das mais variadas formas, os olhares profissionais sobre o meu caso, com as radiografias e análises que tinha feito, deixou-me aquela sensação estranha e medonha de quem vai para o matadouro. A sala estava muito iluminada, como num espectáculo, essa parte foi a parte que mais gostei e fiquei quase feliz por me sentir o centro das atenções. O meu padrinho preparava tudo ao pormenor para começar a intervenção cirúrgica. O que não entendi de imediato foi a quantidade de pessoas que me rodeavam, umas seguravam-me as pernas, outras o baixo ventre e outras os braços, a segurar-me a cabeça para que nada visualizasse, estava uma enfermeira muito nova e extremamente bonita, que me dava festas na cara e me dizia que não ia custar nada. Soube muito mais tarde, que pela minha idade o meu coração podia não suportar a aplicação da máscara de éter, assim chamada a anestesia total, e que por isso me foi aplicada uma anestesia local, os métodos utilizados na época eram bem diferentes dos modernos meios anestésicos só que naquela altura nada entendia sobre o assunto.
Começaram por cortar a carne da perna e embora as dores fossem ainda suportáveis, tinha aquela sensação de estar a ser retalhado em vida. Sei que chorava (chorava muito) e a enfermeira com cara de anjo não retirava os olhos dos meus, numa tentativa de me acalmar...
Não sei quanto tempo estive naquela situação, mas foi muito! As dores cada vez eram mais insuportáveis, sentia dores na carne, nos ossos, mas que se estendiam por todo o meu corpo. As tentativas de fugir de tudo aquilo, eram impedidas pelo número de pessoas que seguravam o meu pequeno corpo. O sofrimento físico passou a barreira do suportável e nessa altura já não tinha lágrimas para chorar nem forças para me manifestar, a vida deixou de ter interesse, já nada tinha importância, estava prostrado mas sempre consciente. Recordo com exactidão todo o sofrimento que a minha pequena vida me submeteu. Quando tudo terminou, olhei para aquele rosto que nunca deixou de me olhar e falar comigo, e disse: - menina, dê-me um beijinho!... Ela segurou-me a cabeça e as suas lágrimas misturaram-se com as minhas, num beijo molhado e inocente.
Fevereiro de 1955

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Boa tarde. Penso que o seu padrinho Tomás é o meu pai infelizmente falecido em há muito (1963). Podia dar-me mais informações para poder confirmar

2:40 da tarde  
Blogger Tomás Silva said...

Sr. João, que mais posso eu dizer? Thomaz de Calheiros e sua mãe Maria José de Calheiros foram meus padrinhos de registo e batismo. Moravam na zona de S.Sebastião da Pedreira (bairro azul) cuja rua já não lembro. O meu padrinho morreu ainda muito novo, eu teria 16/17 anos e convivi mais assiduamente com a minha madrinha após o desaparecimento do filho. Lembro vagamente dos dois filhos mais novos que eu, um rapaz e creio que uma menina. Se chegar à conclusão que é a mesma pessoa, eu fico muito feliz por saber, creia! Obrigado

1:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Claro queé o mesmo .Eu sou o terceiro filho . Fico muito grato por este testemunho,pois infelizmente não tive muito tempo para conviver com ele.Obrigado

9:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Fico muito feliz por ter encontrado alguém, para quem o Dr. Tomás Calheiros (ainda)é precioso. O seu pai foi um homem maravilhoso, personalidade forte, de uma honestidade que hoje é difícil comparar, quer no plano profissional e pessoal. Só tenho uma pena enorme de não ter uma foto dele...
Deixo-lhe o meu endereço de email:
tomas.b.silva@gmail.com
Obrigado por ser filho de quem é!
Um abraço.

10:44 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Olá, Sr.Tomas, o meu nome e Paula e a minha mãe trabalhou para o Dr. Tomás Calheiros e esposa,a tomar conta dos filhotes dele, ela chama-se Constantina ,mais conhecida por os meninos como (Tina)ela gostava de saber se a esposa do Dr. ainda esta entre nós ,pois ela nunca esqueceu essa família principalmente a menina que ainda hoje fala dela em lagrimas por não se ter despedido dela pois a minha mãe sabe que ela ficou muito doente por ela vir embora.Gostava imenso de poder dar alguma noticia ha minha mãe dessa familia.O meu contacto ,paula_tiazinha@hotmail.com.Desde ja agradeço a sua atenção.Paula Ventura

12:16 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fiquei extremamente comovida com a historia de vida do Sr. Tomas,e ainda mais por saber que quem o ajudou , foi esse grande Senhor o dr. Tomás Calheiros,uma pessoa muito boa e generosa como ha poucas hoje em dia assim como a sua esposa tambem uma pessoa como poucas ,isto dito por alguem que ate hoje sente imensas saudades desta familia ,a minha mãe Constantina,mais conhecida por os meninos(filhos do dr. Calheiros),por Tina.Bem aja sr.Tomas Silva por a sua historia reavivar memorias.

3:43 da tarde  
Blogger Teresinha said...

Boa tarde!
Sou neta do seu padrinho, filha do Afonso.
Queria agradecer o seu testemunho, que permitiu conhecer um bocadinho melhor o meu avô. Sou médica e espero um dia poder chegar-lhe aos calcanhares.

4:46 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home