sexta-feira, dezembro 16, 2005

João Manuel

Foi assim num dia como este, chovia muito e àquela hora não se via vivalma. O vento fazia um ruido que gelava com fúria, a chuva e as folhas esquecidas do outono faziam remoinhos em movimentos rítmicos. Sentia-me molhado apesar da gabardine e do chapéu-de-chuva. Quaise três horas da madrugada e o autocarro demorava... nem tinha a certeza dos horários dos transportes públicos. Um pequeno balbuciar de palavras muito perto de mim despertou-me a atenção, voltei-me instintivamente - era um rapaz novo, na casa dos vinte talvez, estava sentado... quaise deitado sobre o primeiro degrau de uma escada, parecia querer dizer algo que não percebi. Por instantes, como se nada tivesse visto, deixei de prestar atenção. O vento fustigava-me o rosto e fazia um zumbido estranho, como um lamento meigo. O rapaz tinha-se levantado com bastante esforço e algum barulho, e fiquei a perceber que estava embriagado e semi-inconsciente, mantendo-se de pé por uns escassos segundos, para tornar-se a deitar desta vez no chão. De um salto tentei segurá-lo mas em vão.
Tem alguma coisa? - Sente-se mal? perguntas do costume naquelas ocasiões. Não deu resposta, nem tal era necessário. Coloquei-lhe a cabeça sobre o meu braço e pude ver mais de perto e ao pormenor o meu companheiro desconhecido. De olhos cerrados e cabelo em desalinho, vestia um fato de bom corte e não tinha nada ar de mendigo. O meu autocarro chegava... hesitei por momentos e desisti logo em seguida. Não podia deixar aquele indivíduo naquele estado e com aquele tempo.
Sentados no degrau da escada, dispus-me a rabiscar os bolsos do casaco, na esperança de encontrar algo que o identificasse. Ainda tentei reanimá-lo em vão, agora que tinha perdido possivelmente o meu último transporte, ia levar o caso até ao fim. Procurei na carteira, vários documentos e cartões de visita... João Manuel... Rua do Bairro Azul, apt. 717... não era longe.

O taxi andava muito devagar devido ao mau tempo e eu, estava desejoso de acabar este episódio tão fora do comum. A cabeça dele balançava de um lado para o outro, acompanhando os movimentos do taxi em andamento. De vez em quando balbuciava algumas palavras que não conseguia perceber. O carro parou diante de um edifício antigo mas bem conservado, a fachada da porta principal era enorme e estava iluminada. Paguei ao condutor e este prontificou-se a ajudar-me, sorrindo com ar cúmplice e olhando o rosto do rapaz.
- São coisas que acontecem, é familia?
- Um amigo! - menti.
Agradeci sinceramente a ajuda e por momentos senti-me perdido, estranho, com a sensação desconfortável de violação de um espaço que não é meu.
O ascensor subiu vagarosamente, apoderei-me das chaves do apartamento, abri a porta e arrastei-o pelo pequeno corredor. Estava cansado... cansado daquela noite invernosa, do vento e do peso deste joão que não sei quem é. Deitei-o sobre a única cama existente à luz dos reclamos luminosos e o seu acende-apaga-acende. Toquei o interruptor e fiquei parado a olhar para tudo, como que á procura de uma justificação pelo facto de estar ali.

Esta acontecimento deu-se em 1973. Durante algum tempo o João Manuel fez parte do meu rol de amigos. Nos dias de hoje, isto só aconteceria via virtual na Internet. Como as coisas mudam...

domingo, dezembro 11, 2005

...das mãos à lua.

Das mãos à lua
exportas
o pássaro alado da tua voz.

Tão alado como a fome
que te escapa dos dedos
ou a palavra imprecisa
de que se fazem as gentes.

Das mãos à lua
a origem selenita
dos teus versos
que estão no ritmo do coração.

Das mãos à lua
esta noite indecifrada
com teu sangue
em que moldas a tua madrugada.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

O meu espaço

Entre o que faço e não penso
E o que pensando não digo,
Há todo um espaço imenso
Onde realmente eu sigo.