sexta-feira, janeiro 20, 2006

O conhecimento

Jaime e Olinda conheceram-se por coincidência (para quem acredita em coincidências). Ambos residiam numa espécie de pensão-hospedaria, muito usual na década de quarenta. Era uma espécie da casa familiar com inúmeras divisões, que eram alugados a solteiros, viúvos e até casais para quem o simples facto de alugar uma casa, era impensável. Olinda tinha um quarto alugado precisamente na casa onde Jaime vivia com a companheira, (amigados, como se dizia na altura)era inevitável que muitas vezes se cruzassem nos enormes corredores, quando era necessário utilizar o banheiro ou a cozinha, únicos aposentos com total serventia. Olinda sabia que a companheira do Jaime estava muito doente (tinha tuberculose) e que o adiantado estado da sua doença fazia prever o pior. Como pessoa solidária que sempre fora, tinha-se prontificado a ajudar no que fosse necessário, porque ela sabia que um homem a tomar conta de uma mulher enferma não era tarefa fácil, e desde fazer limpeza ao quarto do casal, lavar e passar as roupas deles e até fazer o comer para ambos, tornou-se numa tarefa habitual, como habitual se tornaram as suas confidências e cumplicidades.
Um dia, o que mais se temia aconteceu. A companheira do Jaime acabaria por morrer durante o sono, tal era o seu estado. A tuberculose era uma doença de que padecia uma parte razoável da população mais carenciada, os governantes do "aperta o cinto" devem estar ainda hoje a pagar pelos milhares de pessoas que morreram, vítimas da falta de alimentos que de um modo ou de outro, não podiam obter, pela falta de dinheiro ou porque simplesmente não havia. Foi o preço pago pelo povo à neutralidade na guerra de 39/45.
Jaime viu assim partir a sua companheira de alguns anos, e Olinda continuava a ajudar e apoiar no que podia, e até para o funeral teve que fazer um peditório entre os hóspedes e alguns amigos. Jaime ficou só, trabalhava como engraxador numa importante barbearia da capital, mas os ganhos não eram o suficiente e a doença da companheira ainda lhe tinha complicado mais a vida. Um dia teve uma conversa com Olinda...
- Eu não tenho ninguém, você é solteira e vive só, já me trata das roupas e do quarto, podíamos juntar as nossas coisas. Não era aquilo que Olinda sempre sonhara, não amava aquele homem, apenas sentia por ele uma pena enorme, ele nem falou em casamento, mas a solidão também lhe doía.
Informou a família do que ia fazer, e que muito em breve os iria visitar, e quando recebeu a resposta, a carta terminava assim:- És sempre bem vinda cá a casa, mas só recebemos esse homem como teu marido, nunca como teu amante.
Olinda compreendeu e aceitou a imposição da família, outra coisa não era de esperar, e nessa mesma noite o Jaime dormiu no quarto dela, e nas noites seguintes foi ela, definitivamente dormir no quarto dele, até que decidiram legalizar a sua situação matrimonial.
Casaram a meados de 1944 e estiveram assim cinquenta e quatro anos, até que a morte os separou. Mesmo num casamento sem amor, a profecia não falhou. A vida das pessoas têm contornos muito próprios, não haja dúvida.

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Uma história com muitos fins.

Em cinquenta anos de vida, já é possível contar uma boa história, quanto mais não seja, dos anos que foram vividos e dos factos que foram presenciados ou simplesmente de casos que me contaram e que eu sempre acreditei, por fazerem parte do meu imaginário e acabando por serem aceites como autênticos.
Escrever um livro é um passo que eu nunca pensei dar, as pertensões também não são as de um aspirante a escritor, mas que gostaria de deixar aos que me são queridos, o testemunho das coisas que vivi na passagem por este planeta... isso eu gostava!
Não tenho traumas nem ressentimentos pela vida que vivi, e a média é sem dúvida positiva. Procuro escrever com autenticidade, como autêntico eu procurei sempre ser.
As histórias que por vezes são poemas, porque todo o poema contém uma história, podem citar nomes fictícios ou não, mas qualquer semelhança com factos ou pessoas não são coincidência, são mesmo realidade.
Entre a Beira-Alta e Lisboa, o Porto e Angola, os Açores e o Algarve ou o Minho e o Alentejo, foram milhares de kilómetros percorridos que me permitiram conhecer muita gente da mais diversa faixa etária e escala social. Todos foram importantes na minha vida, porque todos contribuiram para o conhecimento do mundo e dos homens. Uma grande parte já não lembro os rostos e outras já nem sei o nome, mas não é importante para poder falar delas e daquilo que nos uniu ou separou. Muitas vezes me disseram que só guardamos na nossa memória o que realmente tem importância para nós, nessa base, estou no caminho certo.

"Gostava de guardar os meus sentidos
numa caixa de ouro e de cristal
entre conchas do mar... búzios partidos...
pequenas coisas sem valor real."

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Para ti que partes... uma esmeralda e uma rosa

Sei que os tempos são escuros.
Sei que os dias se tornarão ásperos demais
mas te digo,companheiro... resiste!
Resiste e avança, mesmo que a verdade te chegue numa manhâ
pela boca/grito de um menino.
Lembra-te
que mesmo enrolada na dôr
dentro dessa noite fria em que te encontras
a vida vai contigo - é fogo e está sempre acesa,
não o esqueças.
Contigo, companheiro, que partes
reparto esta esmeralda que retive em meu peito na despedida
que agora repito.
Contigo, companheiro, que partes para esse caminho longo, áspero e duro,
onde a guerra consolida as diferenças engrendadas pela força feroz
que dezune o mundo e os homens - lembra-te!
Os homens foram feiros para cantar juntos, pois só juntos saberão chegar
à festa do amor final.
O tempo é de cuidados, companheiro!
O tempo é sobretudo de vigília.
(O tempo é de mentira)
Não convém deixar livre esta esmeralda que te ofereço.
Melhor é protejê-la da violência que amarra a canção em pleno vôo.
Foje das cores, companheiro. - Esconde a rosa!
É muito perigosa essa canção de amor...
Canta companheiro!
Não deves ser sozinho nem na solidão.
Derrama a luz no instante certo, que ela terá o sortilégio da seiva
torrencial da primavera.
É por isso que estou contigo.
É por isso que reparto contigo, a minha esmeralda e esta rosa.

Fevereiro de 1970